Tudo tem uma causa, nada acontece por acaso. Será?
O acaso, o vazio e o nada sempre me fascinaram. Para meus córregos de pensamentos, formam um trivium de possibilidades.
O acaso é meu predileto desafio filosófico, desde que entrei para o mundo da ciência, pois na teima em procurar as certezas e entre os princípios elementares aparece a Casualidade, impedindo que o acaso encontre sustentação.
Mas dentre as novas teorias, surgiram as teorias da incerteza, do caos e da complexidade que utilizam o princípio do acaso como possibilidade argumentativa, em especial para a física quântica. Então é interessante usar também para o cotidiano.
Diante dos nossos olhos, um velho sertanejo faz seu cigarro de palha de milho e fumo de rolo, como se fosse uma fotografia que congelou um instante entre seus dedos.
Ele tem traços caucasianos e nazarenos, seu bigode lembra homens dos anos de 1930 aos anos de 1980.
Sua pele em rugas, queimada do Sol e suas mãos envelhecidas denotam um sexagenário bem vivido, entre a lida no campo e o cuidado com o gado.
Sua roupa surrada e de cores cinza e ocre, lembram a terra fértil onde produz seu milho e outros alimentos.
Na cabeça, um chapéu de massa de cor marrom dá o tom camponês a sua imagem e um clássico chapéu que só é usado em ocasiões especiais.
Seu sapatênis preto e também surrado indicam uma cena contemporânea, porém todo o conjunto da obra é pura soleira de uma modernidade arcaica.
Sentado em um tamborete velho, e sobre o acento uma almofada de tecido e espuma, surrada e deformada, dão um leve conforto ao corpo em estado de ócio.
Ao seu lado, um fogão de lenha, feito com cimento queimado e pó xadrez vermelho, dão o tom de uma cor forte e rudimentar.
O fogão de lenha com uma tremp de ferro fundido e três furos, sustenta velhas panelas de alumínio, além de uma chaleira de café.
O fogão de lenha é a mais pura geografia de um fogão do Sertão nordestino, de engenharia artesanal que guarda todos os traços de cozinhas humildes, para o preparo sagrado dos alimentos camponeses.
Ao lado das lenhas que queimam, palhas e sabugos de milho, são a matéria prima para acender o fogo de todas as manhãs.
Um cafezinho quente, forte e adoçado com raspa de rapadura já está pegando o ponto, esperando apenas o ilusório nada de um cigarro em construção.
A arte já está instalada e todos os arranjos de uma cozinha sertaneja demarcam um universo completo e de multiplas relaçoes.
O velho homem em seu tamborete velho, apenas amassa a palha de milho para seu cigarro artesanal.
A palha é para enrolar fumo de rolo que, depois de pronto será acesso com um tição de lenha fina. Será queimado suavemente para nas longas tragadas, gerar os deleites do velho camponês.
Das suas tragadas profundas nascerão luzes e sombras para o desconhecido mundo dos invisíveis cristais.
Nos vazios criados entre a fumaça rodopiante e seu cérebro, entranhas do nada e o nada passa a existir, onde nada existe.
Esse é o velho Ramiro Apolinário de Sousa, 87 anos bem vividos. Agricultor e vaqueiro do Vale do Pajeú das flores.
Um homem calmo e de pouca prosa, montador e amansador de mula brava e botador de cangas em cabras e bodes.
Nasceu e se criou no interior de Pernambuco e suas viagens nunca passaram das 20 léguas. Nunca abandonou sua terra e olhe que já pegou seca braba, daquelas que acabou tudo que sua família tinha.
O velho Ramiro era filho da Geminiano Apolinário de Sousa e sua mãe era Inácia Maria Avelar de Sousa. Gente humilde, de pouca terra e pequeno rebanho.
Olhando para o velho Ramiro, enquanto ele amaciava a palha do milho, lhe indaguei sobre o que ele pensava enquanto preparava o seu cigarro.
Ele disse que sempre pensava no quanto a vida era incerta e imperfeita, que as vezes duvidava da existência de Deus.
Lembrava que mesmo sendo um homem calmo ele já tinha matado um cabra metido a valente que havia se atravessado em seu caminho. Que esse era seu "maior arrependimento, mas era ele ou eu".
Ficava pensando sobre o desconhecido, sobre a sina de ser sertanejo e de ter nascido ali naquele vale seco, rodeado de pedras e serras por todos os lados.
Para ele, aquele momento de fazer um cigarro de palha e tomar um café amargo era como relembrar das amarguras da vida, dos coices de burras chucras e das ovelhas desgarradas nos dentes da cobra cascavel.
Ali perguntei do que ele gostava, se tinha vontade de sair daquele lugar para ganhar o "mundão do meu deus"?
Ele levantou a cabeça e disse que ali era o seu lugar, aquela terra seca, pedregosa, salina e espinosa tinha lhe gerado para ser dali e dali nunca sair.
Sobre gostar, ele disse que gostava de tudo, mas o cheiro da chuva e o cheiro da rapadura quando ainda estava apurando era o que mais gostava.
Também gostava de cavalgar pela caatinga brava, sair quebrando o marmeleiro fino nos peitos do cavalo para sentir o cheiro do mato, pois lembrava do tempo que era moço e das morenas que já tinha namorado, em noites de novena, forró e luar do Sertão.
Disse que gostava de se perder entre as serras nos fins de tarde, só pra ver o vermelhão do mundo, escondendo o sol entre as nuvens e os montes.
Ali arriava do cavalo e ascendia um cigarro de fumo forte, só para apreciar aquela aliança de fogo incendiando as nuvens como um candieiro queimava a escuridão da noite.
Via o vento carregando a fumaça do cigarro e imaginava que não era nada, naquela imensidão vazia, naquela banda de céu que apagava o sol e na mesma hora ia acendendo as estrelas no firmamento.
Disse que nunca teve vontade de sair, mas quando saía com uma tropa de burros e umas cabeças de gado vendido, que cavalgava de Serra Talhada até Belo Jardim, apreciva a viagem. Mas nunca foi mais longe do que isso.
Uma vez, disse que foi até Texeira e Taperoá na Paraíba, umas serras bonitas, uns prados bons de criação, mas viu que era uma coisa só, um mundão bom para quem estava acostumado com aquela lida do interior.
Aí disse que gostava muito de viver sossegado, de sentar na sua cozinha, na beira do fogão de lenha e fazer aquilo que estava fazendo.
Gostava daquela vida simples, daquele cheiro de café coado, daquele cheiro de lenha queimada e de fumar aquele cigarro, enquanto via a fumaça rodopiando no ar.
Aquela era a sua vida e não queria perder o restinho que ainda lhe restava, mesmo que não tivesse certeza de nada, já tinha curado todos os arranhões e espinhadas que a vida lhe dera.
Acordava para a lida, ter um café forte para beber e cigarro de palha para fumar já era bom demais.
Por Belarmino Mariano. Imagem das redes sociais.
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