"Joe Biden conseguiu. Pela irresponsabilidade do atual governo dos Estados Unidos em insistir na expansão da OTAN para as fronteiras russas, agora temos uma guerra na Ucrânia que pode escalar para um conflito de média intensidade ou até para além disto. Por envolver diretamente uma potência nuclear, há sempre um fantasma pairando no ar. Entretanto, é precipitado classificar este conflito como uma 3a Guerra Mundial. Seja como for, o Brasil precisa manter uma equidistância pragmática sem tomar lado. Vamos aos dados.
A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) foi criada pelos Estados Unidos em 1949 com o objetivo de combater a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Após o fim da Guerra Fria em 1989 e a dissolução da URSS, a OTAN perdeu o sentido de existir. Mas, ao contrário, os Estados Unidos decidiram expandi-la para países do Leste Europeu. Nas últimas 3 décadas, a OTAN foi cercando a Rússia com a inclusão de novos membros. Entretanto, nenhum país nas fronteiras russas havia sido acrescido na aliança atlântica.
Em 1991, George H. Bush bombardeu o Iraque para mostrar ao mundo que só havia no momento uma superpotência. Bill Clinton atacou e destruiu a Iugoslávia em 1999, fragmentando o território daquele país e criando um estado postiço no Kossovo. Isto foi uma afronta direta a um aliado histórico da Rússia, que naquele momento não teve como reagir.
Com os ataques em 11 de setembro de 2001, a Doutrina de George W. Bush declarou que os Estados Unidos poderiam fazer guerras preventivas sem o consentimento da ONU e que quem não estivesse ao lado deles seria seus inimigos. Os resultados concretos foram duas grandes guerras: a do Afeganistão em 2001 e do Iraque em 2003. A primeira foi para controlar o heartland da Eurásia e a segunda, para atender ao interesse da indústria petrolífera. Ambas visavam drenar recursos públicos para a indústria bélica.
Desde o fim da URSS, a Rússia teve que confrontar guerras em seu próprio território ou nas fronteiras, muitas das quais tendo os Estados Unidos como patrocinador. Um a um, os regimes aliados à Rússia no Leste Europeu foram sendo derrubados com as chamadas “revoluções coloridas”, que eram operações de mudança de regime empregando as modernas técnicas de guerra híbrida. Em 2014, um golpe de estado articulado pelos Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia derrubou o governo ucraniano, então aliado a Moscou. O objetivo era retaliar a Rússia por ela ter contido a operação de mudança de regime na Síria – uma guerra criada para redesenhar o mapa geopolítico do Oriente Médio na complexa geopolítica dos hidrocarbonetos que também envolve o peso russo no comércio de gás e petróleo. Também visava impedir o acesso russo a mares quentes através do Mar Negro. Planejava ainda expandir a OTAN para as fronteiras russas e assim conter a possível retomada da sua influência na área da antiga URSS.
A subjetividade é um elemento central das modernas guerras híbridas. Assim, foi preciso construir um sentimento de desagregação da identidade eslava russo-ucraniana. Para tanto, foram financiados grupos ultranacionalistas, neonazistas e bandeiristas. Saíram do armário ideias que estavam adormecidas desde a 2a Guerra Mundial com financiamento europeu e estadunidense. Grupos como Svoboda e Setor Direita formaram bancadas no parlamento ucraniano após o golpe. Em 2 de maio de 2014, neonazistas promoveram um massacre de sindicalistas em Odessa, resultando na morte de mais de 40 pessoas e 200 feridos gravemente por terem sido queimados vivos na sede de um sindicato. Nem Estados Unidos nem União Europeia condenaram as ações dos neonazistas.
A Rússia agiu rapidamente para garantir seus interesses estratégicos: reanexou a Crimeia e o poderoso porto de Sabastopol no Mar Negro. Apoiou grupos separatistas na região fronteiriça de Donbass, das autoproclamadas Repúblicas Populares de Luganski e Donetsky. Apesar de ter uma grande população étnica russa, o idioma russo foi banido da oficialidade e sentimentos de xenofobia passaram a ser promovidos amplamente na Ucrânia. Mesmo assim, em 2014, foram estabelecidos os Acordos de Minsk, no qual a Rússia prometeria não atacar a Ucrânia e a Ucrânia deixaria em paz os russos étnicos.
Em 2019, um comediante de televisão, Volodymir Zelensky, foi eleito presidente da Ucrânia com a promessa de retomar a Crimeia, massacrar os separatistas em Donbass e solicitar o ingresso da Ucrânia na OTAN. Ou seja, sua plataforma era rejeitar os Acordos de Minsk. Logo, o conflito se escalonaria para a situação atual.
Desde a crise de 2008/2009, os Estados Unidos e a União Europeia vêm passando por um declínio relativo, enquanto a China e a Rússia vivem uma ascensão – o primeiro na economia e o segundo militarmente. Estes dois países, afastados durante a Guerra Fria, seguiram num processo de reaproximação estratégica. Grupos como o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e a OCX (Organização para a Cooperação de Xangai) contribuíram neste sentido. O projeto chinês da Nova Rota da Seda conta com a Rússia, que também procura retomar sua influência na região eurasiana, particularmente no estratégico Cazaquistão e nas outras antigas repúblicas soviéticas, inclusive as do Leste Europeu.
Com a eleição do republicano Donald Trump em 2017, os Estados Unidos distanciaram-se das hostilidades com a Rússia. Os democratas acusavam-no de ter recebido apoio russo nas eleições. Em 2020, Trump retirou as tropas estadunidenses do Iraque. Joe Biden foi eleito e em 2021, removeu o exército do Afeganistão. Os Estados Unidos foram derrotados nas duas guerras iniciadas na gestão Bush e que tiveram quase duas décadas de duração. Para completar, a guerra na Síria, iniciada no governo Barack Obama, foi contida pela Rússia. Ou seja, os três principais movimentos militares estadunidenses das últimas décadas fracassaram. Mas nada teve impacto tão visível quanto a retirada desesperada dos Estados Unidos de Joe Biden do Afeganistão, derrotados por um grupo de pastores de cabra fundamentalistas religiosos.
Para completar, Biden faz internamente um governo desastroso. Sem ter interesse em mexer nos interesses dos ricos, o país vem enfrentando uma crise econômica e social. A pobreza extrema cresce a olhos vistos e, ao mesmo tempo, os bilionários lucram como nunca antes na História. Com carisma inexistente, Biden precisava de algum tipo de diversionismo. Assim, passou a instar Zelensky a provocar a Rússia em direção a uma guerra que também atende aos interesses do complexo militar-industrial que, fora do Afeganistão e do Iraque, precisava de um novo conflito para receber dinheiro público. Em outras palavras, enquanto o povo dos Estados Unidos passa dificuldades na vida cotidiana, a indústria bélica se deleita com verbas federais.
A Ucrânia seria o cenário perfeito para os Estados Unidos criarem uma guerra por procuração. Biden, o alto escalão de seu governo e a grande mídia estadunidense passaram a provocar a Rússia sob a ameaça de aceitar um pedido de ingresso da Ucrânia na OTAN. Entretanto, isto fere mortalmente os interesses estratégicos russos. Caso a Ucrânia entre para a aliança atlântica, esta finalmente ficará encostada nas fronteiras russas. Isso significa que qualquer conflito que se inicie na região, colocaria todos os membros da OTAN em guerra automática contra a Rússia. Para um país que foi invadido pelas guerras napoleônicas e nas duas guerras mundiais, tal risco é inaceitável. Por isso, a Rússia tentou por todas as vias diplomáticas evitar este conflito.
Em 23/02/2022, Putin ordenou a invasão da Ucrânia. Foi uma resposta a sucessivos ataques ucranianos a russos étnicos na região de Donbass e a uma sabotagem por forças especiais na fronteira. Putin deixou claro que não irá negociar os interesses estratégicos da Rússia. Os Estados Unidos e o Reino Unido querem o conflito e estão enviando armas e dinheiro para a Ucrânia. A Rússia quer garantia de que a OTAN não alcance sua fronteira e que russos étnicos não sejam hostilizados, mas sabe os custos de uma guerra duradoura com ocupação territorial. A União Europeia está dividida. A Alemanha depende do gás russo e sua elite econômica possui grandes investimentos na Rússia. A França, que ingressou à OTAN no governo Sarkozy, não deseja uma guerra de grandes proporções na Europa. Entretanto, será difícil manterem a neutralidade num conflito que pode redesenhar as fronteiras europeias e pode ser entendido como uma onda de expansionismo russo em direção ao oeste.
Qual a posição o Brasil deve adotar? O Brasil deve agir como estado e não como governo. Uma guerra de grandes proporções não é do interesse do Brasil. Como atual membro do Conselho de Segurança da ONU, o Brasil não pode tomar lado neste conflito e precisa manter uma equidistância pragmática. Mas também o país não pode fazer vista grossa ao expansionismo da OTAN. Hoje, o Brasil está cercado de bases militares dos Estados Unidos em vários países sul-americanos e em algum momento este tema terá que ser tratado. Da mesma forma, é preciso que os cidadãos brasileiros não se deixem contaminar pela propaganda de guerra estadunidense ou russa. Ter posição de torcida organizada neste conflito, independente do lado que se escolha, é um grande erro. O Brasil tem que pensar em seus próprios interesses. E o interesse do Brasil é a paz.
Por último, Putin não é santo nem demônio. Ele pode ter ações condenáveis internamente mas neste caso ele está agindo para garantir a sobrevivência da Rússia com a ameaça de expansão da OTAN. Esta guerra não se trata ainda de uma 3a Guerra Mundial, nem de um conflito termonuclear. Mas a depender das movimentações, corre o risco de escalonar para desdobramentos mais complexos. A paz precisa ser negociada. Mas este conflito jamais teria se iniciado se não fosse a sanha do governo Biden em recuperar sua popularidade e de sanar a ganância do complexo militar-industrial dos Estados Unidos. Basta os Estados Unidos cumprirem o acordo feito com a Rússia no fim da Guerra Fria de não expandirem a OTAN pras fronteiras russas e a Ucrânia cumprir os acordos de Minsk que a Rússia não terá mais motivos para seguir em guerra. Guerra e diplomacia caminham lado a lado. Por isso, só a diplomacia pode levar à paz."
(*) Thomas de Toledo é professor de Relações Internacionais da UNIP, historiador pela USP, mestre em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp e especialista em BRICS.
Fonte:
https://brasiliarios.com/politica/2040-a-guerra-de-joe-biden-na-ucrania
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