terça-feira, 21 de novembro de 2017

*SOMOS UM POVO AFRODESCENDENTE*

Imagem da Rádio Vaticano

Durval Muniz - historiador e professor da UFRN.

No dia 20 de novembro, se celebra o Dia Nacional da Consciência Negra, num momento em que somos dirigidos por um governo que vem atacando duramente as poucas conquistas realizadas pela população de origem africana nas últimas décadas.
A paralisação da demarcação das terras dos remanescentes de quilombos, como moeda de troca para ter o apoio da bancada ruralista no Congresso Nacional, a imediata extinção da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, assim que tomou posse, o fechamento de várias embaixadas brasileiras na África, são apenas alguns exemplos que deixam claro que estamos sendo governados, mais uma vez, por racistas e insensíveis as causas sociais da maioria da população.

Somos um país negro e afrodescendente. Temos a maior população de origem africana fora da África. Cerca de 86 milhões de pessoas são descendentes das levas de negros africanos que para cá foram trazidos e aqui transformados em escravos, ao longo de quatro séculos. Desde o século XV,  os europeus começaram a saquear as riquezas africanas e drenar grande parte de sua população para atender a demanda por escravos.

No século XIX,  intensificaram a colonização e, de forma arrogante, dividiram o continente entre si, desconhecendo a realidade africana, separando povos, reunindo povos rivais, segmentando ou aglutinando antigos reinos e nações.
Nesse processo, construíram, de propósito, visões preconceituosas e estereotipadas a respeito da África e de seus povos. 

O continente onde surgiu a espécie humana, onde comprovadamente apareceram os primeiros hominídeos, passou a ser considerado um continente selvagem, desabitado, entregue às florestas e aos animais ou um puro deserto escaldante. O continente, berço das primeiras grandes civilizações como a egípcia, foi visto como bárbaro, atrasado, seus povos como incapazes de por si só se civilizarem, sem a ajuda europeia.
As religiões africanas foram acusadas de diabolismo, a sofisticada e poética religião dos orixás e voduns dos povos iorubás, que no Brasil deu origem ao candomblé, que celebra o espírito dos ancestrais e as forças da natureza, foi sistematicamente perseguida e estigmatizada pelos missionários católicos e protestantes.
Somos, queiram ou não, um povo afrodescendente. Sim, os africanos estão no nosso sangue, na nossa hereditariedade, nos traços que nos tornam um povo mestiço e mestiçado. Mas eles nos trouxeram mais de que seus braços, de que seus ventres onde, com violência ou não, muitos dos brasileiros foram gerados, de que seus seios, onde muito branco foi alimentado. Os africanos não foram sempre escravos, o que a forma como eles normalmente são tratados em nosso ensino de história faz pensar.
Os africanos trouxeram contribuições inestimáveis para a nossa língua, capaz de permitir a construção de uma literatura e de uma poesia brasileiras. Eles nos trouxeram formas de narrar, de contar histórias e trouxeram todo um rico imaginário religioso e laico. Eles nos trouxeram uma rica culinária, que se utilizava de produtos que de lá vieram.

Foram os africanos que nos trouxeram os conhecimentos de metalurgia e foram fundamentais na exploração das minas, pois dominavam a tecnologia de extração de ouro e diamantes, que já faziam em seus reinos na África e foram indispensáveis na implantação da pecuária no sertão.
Após a abolição, a classe senhorial sabotou todas as propostas que propunham a distribuição de terras para os ex-escravos. Os negros foram deixados à sua própria sorte, sem qualquer política de inserção social ou de reparação pelos danos trazidos pela escravidão. Logo após a abolição, muitos tiveram que continuar trabalhando para seus antigos senhores, como única forma de sobreviver.

Muitos aproveitaram a liberdade para confluírem para as cidades, onde vão constituir nos cortiços um proletariado, submetido a trabalhos pesados, degradantes e mal remunerados. Mas será aí que suas tradições culturais serão reutilizadas para com elas recriarem suas identidades e recuperarem sua dignidade. Foi nesses espaços que a capoeira e o samba serviram de instrumentos de defesa e de sociabilidade para essa massa de negros jogados na absoluta miséria pela abolição. Nas fazendas, o jongo, o lundu, o maracatu rural, ajudaram os negros a resistir, nos dando beleza como resposta a mais feia pobreza e exploração, produzindo lideranças, conferindo dignidade.
Hoje, ainda é a população negra que integra majoritariamente os estratos menos abastados de nossa sociedade. 
No Brasil a pobreza tem cor, há uma relação direta, que tem a ver com nossa história, entre a desigualdade social e a racial. Dois, em cada três negros, vivem na linha da pobreza, ganham salários inferiores aos brancos, eles são 74% dos dez por cento mais pobres do país e 69% dos indigentes. Os negros que representam 54% da população do país, eram apenas 5,5% dos estudantes do ensino superior, antes da adoção da política das cotas, política odiada pelos setores mais conservadores e um dos motivos do golpe, desde lá até 2015 essa participação dobrou, alcançando 12,8% sendo, no entanto, ainda bastante baixa.
No entanto, há quem diga que no Brasil não tem racismo e que adotar políticas reparatórias é privilegiar os negros em detrimento da meritocracia. Portanto, amanhã, mais do que um dia de comemoração, deve ser um dia de denuncia das condições da população negra no país; de luta contra o desmonte das políticas públicas de inclusão racial e de combate ao racismo, implementadas nos últimos anos, pelo governo golpista; de defesa das conquistas feitas pela cidadania negra, através da longa resistência. Resistência e luta que não deixou de ser feita através da beleza, da solidariedade, da dignidade, da fé e da criatividade.

Fonte da imagem:
 http://pt.radiovaticana.va/news/2017/09/09/valorizar_a_heran%C3%A7a_cultural_e_espiritual_dos_afrodescendent/1335824 

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