Por Eduardo Rabenshorst
Butler é uma das principais teóricas do gênero, mas você certamente prefere chamá-la de “ideóloga” do gênero. Tudo bem, logo você que segue um grupo de extrema-direita ou uma ideologia religiosa, querer tachar a teoria dos outros de “ideológica”? Mas isso é um pequeno detalhe. Ideologia ou não, o gênero é uma ideia presente na antropologia há muitas décadas, muito antes de Butler ter nascido. A ideia é simples. Não é a fome, mas a etiqueta que faz com que você não deva arrotar à mesa (espero que seja o seu caso).
Quer dizer, existe a necessidade biológica de se alimentar e um conjunto de regras, variáveis de uma cultura à outra, dizendo de que maneira se deve comer. O mesmo vale para o sexo. O fato de eu ter nascido com o sexo masculino é uma coisa, outra coisa é ter aprendido a gostar da cor azul, a usar calças e a jogar futebol. Se eu tivesse nascido na Escócia teria talvez aprendido a usar saia. O sexo, portanto, é biologia. O gênero, por sua vez, é cultura (mais adiante a gente vai complicar essa ideia, mas por enquanto basta).
Por isso aquela frase bem conhecida de Simone de Beauvoir de que alguém não nasce “mulher”, mas se torna. Dito de outro modo, alguém nasceu fêmea, isso é biologia, mas somente virou “mulher” por conta da educação, o que é cultura. Se você tivesse lido o linguista Ferdinand Saussure entenderia melhor que “mulher” é somente um signo que se refere a uma coisa, assim como a palavra “rosa” é um signo que remete à rosa que se encontra ali no jardim. O problema, observe, é que além de designar aquela flor no jardim, a palavra “rosa” também pode ser usada como metáfora, quando, por exemplo, digo que “Maria é uma rosa”.
Com isso quero dizer que Maria tem os atributos que identifico numa rosa: delicadeza, beleza etc. Note que a relação entre o signo e a coisa não é fixa ou definitiva. No caso, você poderia pensar: a que coisa se refere o signo “mulher”? Certamente àquela mulher que passa ali na calçada usando uma saia curta. Mas se um escocês estivesse igualmente passando pela minha calçada usando aquelas saias quadriculadas que eles costumam usar? Seria ele também uma mulher, apenas por causa da roupa? Não, você diria, ele não é uma “mulher” porque não possui uma vagina. Será? E se, por acaso, ele tivesse uma perereca?
Vamos supor que ele tivesse feito uma cirurgia de mudança de sexo. Seria ele uma mulher? Não, você diria, pois ele não seria capaz de engravidar e trazer no ventre uma criança. Então, se ser “mulher” é ser capaz de engravidar, como ficam as mulheres que por algum motivo não podem ter filhos? Não seriam verdadeiras mulheres? Você com certeza retrucaria. Não, idiota, ser mulher é ter cromossomos XX, você diria. Mas será? A medicina está repleta de casos em que a presença de tais cromossomos não está de acordo nem com a morfologia (ter pitoca ou ter perereca) nem com o fato de alguém se “sentir” homem ou mulher. Note, portanto, que ser “homem” ou ser “mulher” é algo bem mais complicado do que parecia ser à primeira vista.
E Butler nisso tudo? Butler é alguém que radicalizou essas ideias e tentou mostrar que não só gênero, mas também o sexo depende da cultura. Senão vejamos, como é que a gente classifica o sexo de alguém? Como em muitas outras coisas na vida, são as instituições que se encarregam de fazer isso, especialmente a medicina e o direito.
Assim, logo na maternidade, o médico, no olho, decide se você é homem ou mulher, preenchendo um certificado de nascimento com vida. Este certificado é levado ao cartório e lá o funcionário faz uma certidão de nascimento ratificando o sexo escolhido no hospital. Para muitos indivíduos isso será um desastre. Pense naquelas pessoas outrora chamadas “hermafroditas”. Deveriam estar condenadas a permanecer com o sexo escolhido pelos médicos ou elas poderiam optar por outro? Note que no fundo a discussão é muito menos sobre sexo e muito mais sobre direitos e liberdades.
Em uma sociedade livre e democrática o sexo, como muitas outras coisas, poderia ser uma escolha, não um destino. Isso iria complicar nossa vida? Sem dúvida, tanto quanto ter que escolher a marca do automóvel que você vai comprar. No passado era Jeep, fusca ou Kombi. Hoje tem carro para todos os gostos. O mesmo vale para o café e a cerveja. Mas por que com relação ao sexo a possibilidade de escolha gera tanto medo nas pessoas? Certamente porque elas acreditam em coisas como pecado, tabu e tradição, e temem que a escolha livre do sexo acabe com algumas instituições, como a família.
Pessoalmente, creio que a família corre mais risco é com o whatsapp impedindo que pais e filhos conversem. Butler tem ideias complicadas, especialmente sobre o que se convencionou chamar de hererosexualidade compulsória. Você não precisa concordar com ela. Eu mesmo não concordo com muitos pontos, mas reconheço que ela é uma autora importante, que precisa ser lida e ouvida. Talvez você pense o contrário. Poderia apenas pensar, mas prefere tentar impedi-la de falar...".
Quer dizer, existe a necessidade biológica de se alimentar e um conjunto de regras, variáveis de uma cultura à outra, dizendo de que maneira se deve comer. O mesmo vale para o sexo. O fato de eu ter nascido com o sexo masculino é uma coisa, outra coisa é ter aprendido a gostar da cor azul, a usar calças e a jogar futebol. Se eu tivesse nascido na Escócia teria talvez aprendido a usar saia. O sexo, portanto, é biologia. O gênero, por sua vez, é cultura (mais adiante a gente vai complicar essa ideia, mas por enquanto basta).
Por isso aquela frase bem conhecida de Simone de Beauvoir de que alguém não nasce “mulher”, mas se torna. Dito de outro modo, alguém nasceu fêmea, isso é biologia, mas somente virou “mulher” por conta da educação, o que é cultura. Se você tivesse lido o linguista Ferdinand Saussure entenderia melhor que “mulher” é somente um signo que se refere a uma coisa, assim como a palavra “rosa” é um signo que remete à rosa que se encontra ali no jardim. O problema, observe, é que além de designar aquela flor no jardim, a palavra “rosa” também pode ser usada como metáfora, quando, por exemplo, digo que “Maria é uma rosa”.
Com isso quero dizer que Maria tem os atributos que identifico numa rosa: delicadeza, beleza etc. Note que a relação entre o signo e a coisa não é fixa ou definitiva. No caso, você poderia pensar: a que coisa se refere o signo “mulher”? Certamente àquela mulher que passa ali na calçada usando uma saia curta. Mas se um escocês estivesse igualmente passando pela minha calçada usando aquelas saias quadriculadas que eles costumam usar? Seria ele também uma mulher, apenas por causa da roupa? Não, você diria, ele não é uma “mulher” porque não possui uma vagina. Será? E se, por acaso, ele tivesse uma perereca?
Vamos supor que ele tivesse feito uma cirurgia de mudança de sexo. Seria ele uma mulher? Não, você diria, pois ele não seria capaz de engravidar e trazer no ventre uma criança. Então, se ser “mulher” é ser capaz de engravidar, como ficam as mulheres que por algum motivo não podem ter filhos? Não seriam verdadeiras mulheres? Você com certeza retrucaria. Não, idiota, ser mulher é ter cromossomos XX, você diria. Mas será? A medicina está repleta de casos em que a presença de tais cromossomos não está de acordo nem com a morfologia (ter pitoca ou ter perereca) nem com o fato de alguém se “sentir” homem ou mulher. Note, portanto, que ser “homem” ou ser “mulher” é algo bem mais complicado do que parecia ser à primeira vista.
E Butler nisso tudo? Butler é alguém que radicalizou essas ideias e tentou mostrar que não só gênero, mas também o sexo depende da cultura. Senão vejamos, como é que a gente classifica o sexo de alguém? Como em muitas outras coisas na vida, são as instituições que se encarregam de fazer isso, especialmente a medicina e o direito.
Assim, logo na maternidade, o médico, no olho, decide se você é homem ou mulher, preenchendo um certificado de nascimento com vida. Este certificado é levado ao cartório e lá o funcionário faz uma certidão de nascimento ratificando o sexo escolhido no hospital. Para muitos indivíduos isso será um desastre. Pense naquelas pessoas outrora chamadas “hermafroditas”. Deveriam estar condenadas a permanecer com o sexo escolhido pelos médicos ou elas poderiam optar por outro? Note que no fundo a discussão é muito menos sobre sexo e muito mais sobre direitos e liberdades.
Em uma sociedade livre e democrática o sexo, como muitas outras coisas, poderia ser uma escolha, não um destino. Isso iria complicar nossa vida? Sem dúvida, tanto quanto ter que escolher a marca do automóvel que você vai comprar. No passado era Jeep, fusca ou Kombi. Hoje tem carro para todos os gostos. O mesmo vale para o café e a cerveja. Mas por que com relação ao sexo a possibilidade de escolha gera tanto medo nas pessoas? Certamente porque elas acreditam em coisas como pecado, tabu e tradição, e temem que a escolha livre do sexo acabe com algumas instituições, como a família.
Pessoalmente, creio que a família corre mais risco é com o whatsapp impedindo que pais e filhos conversem. Butler tem ideias complicadas, especialmente sobre o que se convencionou chamar de hererosexualidade compulsória. Você não precisa concordar com ela. Eu mesmo não concordo com muitos pontos, mas reconheço que ela é uma autora importante, que precisa ser lida e ouvida. Talvez você pense o contrário. Poderia apenas pensar, mas prefere tentar impedi-la de falar...".
Fonte do texto: Redes Sociais - Whatsap.
Fonte da imagem: https://www.sul21.com.br/jornal/vinda-de-judith-butler-ao-brasil-tem-apoio-de-cientistas-sociais/
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