Por Joana Belarmino
Muitas vezes, no meio da tarde, numa espécie de intervalo das lides do dia, minha mãe decidia ir à venda de dona Madalena, comprar o pão doce para o café da tarde.
Buscava na sua velha lata de biscoitos, cédulas e moedas, e, de repente, encarando uma nota amassada, interrompia sua coleta e dizia: Não, eu nunca vou entender isso.
O quê, mãe, eu perguntava. com o pequeno molho de cédulas na mão fechada, repondo a lata de biscoitos no guarda-roupa, ela arrematava: Nunca vou entender,como pode o mundo ser governado por um pedaço de papel!
Na sua simplicidade, sem o saber, minha mãe tocava num dos temas mais complexos da cultura humana: O tema da invenção dos símbolos e convenções, da produção e repartição das riquezas.
Do alto da minha juventude, das minhas leituras recentes de “O Capital”, de Karl Marx, eu poderia falar para minha mãe sobre as trocas humanas, os processos de compra e venda, a fantástica invenção do dinheiro, da mas valia e de como ela alimentava o capital. Mas não. facinada por aquele momento em que minha mãe refletia sobre o mundo, eu ficava do seu lado, participava da sua indignação, da sua perplexidade.
No seu passo ligeiro, minha mãe ia até à venda, com seu pequeno molho de cédulas fechado na mão direita. meia hora depois, comíamos o pão doce com seu café da tarde, enquanto ela regava a mesa com as miudezas acontecidas na vizinhança.
Pronto, aquele momento capital tinha passado. De novo minha mãe se deixava ficar perfeitamente acomodada no seu mundo de dona de casa, ciosa dos seus deveres e afazeres.
Eu ficava ruminando aquela cena, a perplexidade dela, sua inaceitação de um mundo regulado por um papel.
O momento tinha acabado para ela. Para mim, não. enquanto mastigava o pão, enquanto sorvia o café em pequenos goles, eu ficava refletindo sobre sua perplexidade, sua indignação,imaginando se ela pudesse estar no meu lugar, sentada num banco de faculdade, as mãos lisas segurando seus livros, discutindo com os colegas e o professor, o problema da distribuição das riquezas do mundo.
Mas não. Minha mãe vivia num mundofixo, um mundo simples, um mundo com regras tão perfeitas que lembravam a vida dos vegetais: O mundo da minha mãe envolvia os atos de nascer, crescer, reproduzir-se e fim. Nesse seu mundo não havia a palavra terrível chamada excedente.
Como as árvores da floresta, que trocam entre si, seiva, energia, informação, minha mãe partilhava com seus vizinhos, o excedente da colheita, da caça, do animal doméstico que muitas vezes meu pai sacrificava para o sustento da família.
Minha mãe não podia entender o poder do dinheiro, um papel que só chegava às suas mãos todo amassado, riscado, sujo até, depois de haver circulado por muitas outras mãos.
Mas porque me ocorreu agora essa lembrança? Por quais caminhos tortos, pontos de bifurcação, nosso cérebro nos entrega pacotes de coisas esquecidas?
Por esses dias comecei a ler o livro “Diante de Gaia: Oito Conferências sobre a Natureza do Antropoceno”, de Bruno Latour. O livro é um duro alerta sobre o impacto da espécie humana no planeta terra, uma profunda reflexão sobre o modelo civilizatório atual, que trouxe alterações tão marcantes na estrutura da terra, capazes de inaugurar um novo dna para o planeta, caracterizado pela chamada era do antropoceno.
Essa nova era coincide com a consolidação do capitalismo e ainda antes, da estruturação dos sistemas bancários, culminando com a revolução industrial e os seus desenvolvimentos recentes.
Bruno Latour vai ainda mais fundo. Numa discussão árida, penetra no âmago da cultura humana, para ali refletir sobre a separação que se processou entre natureza e ser humano, natureza e cultura, desenvolvimento industrial e modelo de consumo, e tantas outras reflexões que não posso desenvolver aqui, no espaço apertado dessa crônica.
Gaia não parece nos remeter mais à uma visão romântica da terra como um ser vivo, auto regulado, provendo todas as necessidades dos outros seres vivos. Segundo minha leitura ainda inicial do livro de Bruno Latour, gaia é hoje uma espécie de amálgama entre planeta, seres vivos, seres humanos e seu modelo de desenvolvimento. Estamos hoje no centro de uma crise que para o autor, já não pode mais ser mitigada.
O livro de Bruno Latour começa com uma imagem metafórica de força assustadora: Uma bailarina dançando para trás, com uma expressão de pavor no rosto. Dançando para trás, como se fugisse de algo aterrorizante. Dançando, e de repente, estacando e voltando-se, para imprimir na face a expressão absoluta do pavor.
O mundo da minha mãe não tem mais lugar nem geografia no nosso planeta. Minha mãe, se aqui estivesse, ficaria assombrada com o que pode hoje o capital. Tampouco haveria a venda de dona Madalena, e o punhado de velhas notas na lata de biscoitos da minha mãe. O balé assombroso, o pavor impresso no rosto da bailarina, são, em larga medida, o grito absurdo de uma era insensata: A era do antropoceno.
Fonte: https://diariodevanguarda.com.br/colunas/o-mundo-da-minha-mae/ . Publicado em 29/10/2023.
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