Texto: Luiz Prado
Arte: Carolina Borin Garcia
“Nunca, na história da humanidade, houve condições técnicas e científicas tão adequadas a construir um mundo da dignidade humana. Apenas, essas condições foram expropriadas por um punhado de empresas que decidiram construir um mundo perverso. Cabe a nós fazer dessas condições materiais a condição material da produção de uma outra política.”
As palavras acima foram proferidas há mais de 25 anos, mas permanecem atuais. Pertencem ao geógrafo e professor da USP Milton Santos (1926-2001) e estão no documentário Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá, de Silvio Tendler. São uma tímida amostra da visão crítica e ao mesmo tempo esperançosa do professor, responsável por uma verdadeira revolução na geografia.
Trailer do documentário Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá, de Silvio Tendler
Milton Santos foi pioneiro ao propor que a geografia deveria ser encarada não como uma ciência natural, mas como uma ciência humana. O espaço é a própria sociedade. Com isso em mente, realizou dezenas de pesquisas sobre a urbanização dos países do então chamado Terceiro Mundo e expandiu o campo de estudos de sua disciplina para áreas como urbanismo, sociologia e economia.
“A mensagem mais importante que Milton nos deixou é que devemos esperar transformações de áreas sociais insuspeitas”, reflete Luís Carlos de Menezes, professor do Instituto de Física da USP e coordenador acadêmico da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. “A ideia de olhar a periferia do pensamento central é importante, tem muito a ver com a ideia de que a fragmentação disciplinar da cultura contemporânea, de certa maneira, aprisiona a sociedade.”
São justamente essa amplitude de interesses e a visão transversal para os problemas sociais que motivaram Menezes a conceber o Simpósio Milton Santos e a Educação, iniciativa daquela cátedra, que acontece no dia 13, segunda-feira. Com participação de professores e pesquisadores da USP e de outras universidades públicas brasileiras, o evento tem curadoria de Menezes, Naomar Almeida Filho, titular da cátedra e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e Ana Fernandes, também docente da UFBA. As atividades acontecerão no auditório do IEA, com transmissão ao vivo pelo Youtube. O simpósio marca o início dos trabalhos da cátedra em 2023.
“Milton Santos tinha sensibilidade para ter expectativas a respeito do que as pessoas não dão muita atenção. Uma abertura epistemológica para pensar coisas que não vêm necessariamente do grande pensamento central, mas das periferias”, pontua Menezes.
O coordenador acadêmico da cátedra explica que a discussão sobre educação proposta pelo simpósio tem a ver com essa mirada epistemológica e o pensamento social de Milton Santos. “A educação precisa, de certa maneira, de um olhar de soslaio, precisa sair do campo central e ter uma atitude mais transversal, para permitir que o novo também emerja nos fazeres educacionais”, comenta Menezes.
Revolucionário e libertário
Para Maria Adélia de Souza, que no simpósio vai fazer a exposição Geografia Nova, Revolucionária e Libertária, Milton Santos reforça uma busca partilhada por uma série de geógrafos ao afirmar que a geografia é uma ciência humana responsável pelo estudo do tempo presente e, ao mesmo tempo, uma filosofia das técnicas. “No livro Por uma Geografia Nova, lançado em 1978, Milton revisita todos os conceitos geográficos, propondo um novo edifício teórico-metodológico que se impõe não apenas à ciência geográfica, mas às ciências humanas e sociais, que também estudam a sociedade existindo na superfície do planeta”, explica a professora.
A ideia, explica Maria Adélia, é encarar como objeto de estudo da geografia o espaço entendido como um indissociável sistema de objetos atrelado a um sistema de ações. “Milton Santos revoluciona o estudo sobre as paisagens totalmente controladas ou produzidas socialmente neste período histórico, que ele denomina de técnico-científico informacional, demarcando com sua obra uma nova fase para a produção do conhecimento na geografia e nas ciências humanas.”
Na perspectiva de Maria Adélia, a obra do geógrafo é revolucionária e libertária porque foi produzida com a visão “de um intelectual público e orgânico do Sul do mundo, colocando como sujeito importante desses tempos históricos de benesses técnicas e tecnológicas os homens e mulheres pobres e lentos do planeta, que se constituem em uma maioria”. Para Milton Santos, a força dos fracos estaria justamente em seu “tempo lento”, já que, como resistentes históricos, estes não tiveram acesso, mas também não foram iludidos pela volúpia e aceleração do tempo presente. “Aí está, no conhecimento das dinâmicas dos lugares desses sujeitos históricos, a possibilidade única de gestação de um novo modelo cívico, logo civilizatório, revolucionário e libertário”, defende a professora.
Apesar (ou por causa) de todos esses atributos, Milton Santos segue como um intelectual mais citado do que efetivamente estudado, de acordo com Maria Adélia. “A geografia nova de Milton Santos ainda não é ensinada nestes tempos globalizados como disciplina obrigatória nos cursos de Geografia ou de Ciências Econômicas, Sociais e Políticas, onde também o espaço geográfico é o grande ‘protagonista’.”
Territorialidade e transversalidade
Apesar das ausências apontadas por Maria Adélia, o pensamento do geógrafo instiga pesquisadores atrelados ao campo da educação, que procuram expandir as reflexões do geógrafo para os desafios do ensino no século 21. É o que propõe, por exemplo, Maria Lucia Neder, que será responsável, no simpósio, pela exposição Milton Santos, Territorialidade e Transversalidade na Educação Básica.
Conforme a professora, a partir de Milton Santos podemos compreender que a educação deve ter como um de seus propósitos o oferecimento de condições para a realização de uma vida com sentido. “Ela deve ser concebida para atender, ao mesmo tempo, ao interesse social e ao interesse dos indivíduos”, afirma Maria Lucia. “É a combinação desses interesses que deve nortear, a partir de princípios fundamentais, os projetos pedagógicos das escolas no contexto de sua relação com a comunidade e com o mundo.”
Maria Lucia explica que essa visão se apoia sobretudo em ideias de Milton Santos relativas aos conceitos de espaço, tempo, território, lugar e territorialidade. “A territorialidade pode ser compreendida como o lugar onde a história do homem se realiza plenamente, a partir das manifestações de sua existência. Envolve a própria produção da identidade de indivíduos e de grupos nas várias dimensões da vida. Territorialidade, portanto, como sinônimo de pertencer àquilo que nos pertence.”
Partindo da ideia de territorialidade, prossegue a professora, a educação não deve ser vista como instrumentalizadora, mas como emancipadora, atuando para a construção de uma vida com sentido, pautada em princípios como solidariedade, justiça social, fraternidade, respeito às diferenças, respeito ao ambiente e defesa da democracia. “Assim, o currículo escolar, porque enraizado na historicidade dos alunos, que implica a relação dialética do mundo global com o mundo local, não pode se efetivar mediante a fragmentação do conhecimento, como tradicionalmente se trabalha.”
Já a transversalidade, outro eixo da exposição de Maria Lucia, diz respeito ao modo de apreender a realidade. Trata-se de ir além de conhecimentos sistematizados teoricamente e partir também de questões da vida real. “A abordagem de temas transversais deve se orientar pelos processos de vivência da sociedade, das comunidades, dos estudantes e dos educadores. Como eixo educativo, a transversalidade deve oportunizar uma educação comprometida com a cidadania.”
Invisibilidade geográfica
“Por que convivemos há séculos com geografias construídas e contadas na perspectiva dos ‘vencedores’, dos que se acham ‘donos dos territórios e do controle da sociedade’?”
O questionamento é feito por Rafael Sanzio dos Anjos, que abordará no simpósio as críticas de Milton Santos à universidade brasileira. Para o docente, a mentalidade colonial e a desigualdade secular são elementos que ajudariam a responder à pergunta. E quando pensamos no caso de Milton Santos e na resistência em incluí-lo nos currículos, outro fator também apareceria como determinante: a invisibilidade do Brasil africano, de sua população e de seus intelectuais.
Sanzio dos Anjos se indaga sobre esse processo de invisibilidade geográfica que vê em curso no País. “Por que Por uma Geografia Nova, publicada há três décadas com referências teóricas e revelações da Geografia Real, ou seja, a espacialidade da exclusão e do conflito histórico do País, não tem a importância e nem um lugar honroso nas universidades públicas e privadas?”
Para o professor, essa e outras questões só terão respostas políticas e instrumentos eficazes se o Brasil colonial que ainda resiste puder enxergar essa geografia da exclusão secular como uma política pública oficial de uma universidade branca.
Programação
A abertura das atividades do Simpósio Milton Santos e a Educação acontece às 8h30, com intervenções da coordenadora da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica e vice-diretora do IEA, professora Roseli de Deus Lopes, a superintendente do Itaú Social, parceiro da USP na cátedra, Patrícia Guedes, e Ana Inou, superintendente do Itaú Educação e Trabalho.
Às 9 horas começa o primeiro painel, Milton Santos, Um Intelectual Revolucionário, que vai oferecer um panorama da vida e das atividades do geógrafo. Participam as professoras Maria Auxiliadora da Silva, da UFBA, Maria Adélia de Souza e María Mónica Arroyo, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Lucrécia D’Aléssio Ferrara, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, e Renato Emerson Nascimento dos Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em seguida, às 11 horas, haverá um debate com coordenação de Adriana Alves, do Instituto de Geociências da USP, e Luís Carlos de Menezes.
O segundo painel, Milton Santos e a Educação, focado no diálogo do geógrafo com áreas como epistemologia, educação básica e ensino superior, acontece às 14 horas. Participam as professoras Rosa Ester Rossini, da FFLCH, e Luiz Alves, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, Maria Lucia Neder, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Rafael Sanzio dos Anjos, da Universidade de Brasília (UnB) e da UFBA, e Nilda Guimarães Alves, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Assim como no período da manhã, um debate acontece em seguida, coordenado pela professora Bernardete Gatti, do IEA, e Fabio Contel, professor da FFLCH.
Fechando a programação, haverá uma homenagem da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica à memória de Milton Santos, com a participação de Marie-Hélène Tiercelin dos Santos, viúva do geógrafo, e Guilherme Ary Plonski, diretor do IEA.
Cidadão do mundo
Milton Almeida dos Santos nasceu em 3 de maio de 1926 em Brotas de Macaúba, cidade localizada na região da Chapada Diamantina, na Bahia. Neto de escravos e filho de pais professores primários, formou-se em Direito na UFBA em 1948 e tornou-se doutor em Geografia pela Université de Strasbourg, na França, em 1958. Até 1964, atuou tanto na vida pública quanto acadêmica. Foi professor de Geografia Humana da Universidade Católica de Salvador entre 1956 e 1960 e professor catedrático na mesma área na UFBA, onde criou o Laboratório de Geociências.
Atuou como diretor da Imprensa Oficial da Bahia entre 1959 e 1961, presidente da Fundação Comissão de Planejamento Econômico do Estado, de 1962 a 1964, e representante da Casa Civil na Bahia na presidência de Jânio Quadros, em 1961. Foi também correspondente e redator do jornal A Tarde por mais de dez anos, de 1954 a 1964.
Com o golpe de 1964 e o início da ditadura militar, a vida de Milton Santos mudou radicalmente. Um mês após a queda de João Goulart, o geógrafo foi mantido em prisão domiciliar e logo depois partiu para o exílio, de onde só voltaria em 1977.
Nesse tempo fora, Milton Santos não ficou inativo. Pelo contrário. Foi professor convidado nas universidades francesas de Toulouse, Bordeaux e Paris-Sorbonne. Passou também, como pesquisador, pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), em Boston, nos Estados Unidos, e deu aulas nas Universidades de Toronto, no Canadá, Columbia, nos Estados Unidos, Lima, no Peru, Caracas, na Venezuela, e Dar es Salaam, na Tanzânia.
Além da atividade docente, Milton Santos se dedicou intensamente nesse período à reflexão e à teorização em geografia. Frutos desse trabalho são livros como Les Villes du Tiers Monde (1971) e L’Espace Partagé: Lex Deux Circuits de l’Économie des Pays Sous-Développés (1975), nos quais demonstra seu interesse pelo estudo da economia urbana dos países em desenvolvimento.
Após sua volta ao Brasil, o professor publicou um clássico dos estudos metodológicos de sua área: Por Uma Geografia Nova (1978), na qual defende uma disciplina direcionada para questões sociais. E continua com a atividade docente, lecionando na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) de 1979 a 1983 e, em seguida, na USP, onde se aposentou em 1995 e recebeu o título de Professor Emérito em 1997. Ao todo, 12 universidades brasileiras e sete estrangeiras concederam a Milton Santos o título de Doutor Honoris Causa. Ele também foi agraciado, em 1994, com o prêmio Vautrin Lud, a mais alta honraria internacional no campo da geografia, sendo o único brasileiro, até hoje, a recebê-la.
Foi naquela década também que ele publicou uma de suas maiores obras, A Natureza do Espaço (1996), vencedora do Prêmio Jabuti na categoria Ciências Humanas. Seu último livro publicado em vida foi Por Uma Outra Globalização (2000), no qual se mostra crítico ao processo de globalização em marcha, mas sem perder as esperanças. Para Milton Santos, a globalização deveria ser encarada a partir de três pontos de vista: o mistificado, o real e o possível. “O primeiro seria o mundo tal como nos fazem vê-lo: a globalização como fábula”, escreveu o geógrafo. “O segundo seria o mundo tal como ele é: a globalização como perversidade; o terceiro, o mundo como ele pode ser: uma outra globalização.”
Milton Santos morreria no ano seguinte, aos 75 anos, tendo escrito mais de 40 livros e sendo considerado “Brasileiro do Século” pela revista Isto É. Seu acervo, com biblioteca, documentos e anotações, está no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.
Serviço
O Simpósio Milton Santos e a Educação, que marca o início das atividades da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica da USP em 2023, acontece no dia 13 de fevereiro, das 8h30 às 18 horas, no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP (Rua da Praça do Relógio, 109, Cidade Universitária, em São Paulo). As vagas para participação presencial estão esgotadas, mas o evento será transmitido pelo canal da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica da USP no Youtube. Não é necessário fazer inscrição. Evento grátis. Mais informações estão disponíveis no site da cátedra.
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.
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