sexta-feira, 10 de maio de 2019

Belíssima carta ao Lula...


Pai Rodney de Oxóssi*

Presidente Lula,
Venho trazer-te um abraço de minha mãe e minhas tias. Gente simples, suas eleitoras, que sofreram e ainda sofrem com as injustiças dessa vida. São mulheres negras, que conheceram as privações, as dores, as perdas. Mulheres marcadas pelas estatísticas mais perversas. Que criaram seus filhos sem pais, que os perderam antes que completassem 20 anos. Mulheres que carregaram sacolas pesadas nas filas das detenções, que foram condenadas a viver sozinhas. Mulheres guerreiras, que lutaram muito pelo simples direito de existir. Sou filho de todas elas, sou um sobrevivente.

São muitas, Senhor Presidente. São Carolinas, Marias, são de Jesus e de todos os Orixás, são negras e são pobres. Elas nem foram à escola, Presidente, são autodidatas e fizeram do tempo sua universidade. Moram longe, bem longe, lá onde a lei do silêncio e a lei do cão imperam, lá onde esse tal de Estado Democrático de Direito nunca deu as caras. Lá, onde guarda-chuvas se transformam em fuzis e onde a mão pesada da polícia dispara cento e onze vezes contra corpos que ousam atravessar a fronteira. Lá, de onde eu vim.
Elas choram cantando. Um samba triste que fala de esperança e sonhos. Elas te conhecem, Presidente, te defendem, te amam. Elas passaram a vida esperando aquele dia, aquele dia primeiro, quando subiram a rampa junto de ti, de braços dados, orgulhosas. Saíram de todos os cantos, das periferias, favelas, cortiços. Elas sabiam, Senhor Presidente, porque do “Quarto de Despejo” uma dessas Carolinas anunciou: “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.” Elas sabiam.
Presidente Lula, nessa escola em que estudaste, essas mulheres foram professoras. Elas te conhecem profundamente e eu sei que o senhor também as conhece, afinal, nasceste de uma delas. Dessas, que deixaram de comer pra dar aos filhos, que não esmoreceram diante de adversidades seculares, que suportaram a escravidão, o açoite. É dessas mulheres que descendemos. São elas, Presidente, que te mandam este abraço, minhas mães, minhas tias.
Pra elas, tu és como um filho, porque elas mesmas já levaram o “jumbo” tantas vezes, já foram humilhadas, já viram seus direitos negados. Elas sabem exatamente o que estás passando. Elas se solidarizam. Eu também.
Sabes, Presidente, sou um homem negro consciente de meu lugar neste país racista. Entre ricos e pobres, continuo sendo negro. Entre esquerda e direita, continuo sendo negro e na minha mão um simples pacote de pipocas pode ser confundido com drogas e justificar minha morte. Ter acesso a bens de consumo não me faz deixar de ser negro. Ter um diploma de doutor, um bom salário, uma boa casa, um bom carro, nada disso me isenta dos riscos e das consequências do racismo.
Foi um erro, Senhor Presidente, foi um grande erro alimentar a ideia de uma nova classe média. Criar na cabeça do brasileiro a ilusão de que ter acesso a bens de consumo promoveria sua ascensão social fez com que muitos passassem a se comportar como tal e reproduzissem o discurso do opressor, rejeitando as políticas sociais e de promoção de igualdade que deram melhores condições de vida ao povo e que colocaram o país entre as maiores economias do planeta.
Pois bem, Presidente, ou se serve à elite ou se serve ao povo. Fizeste tua escolha e pagaste o mais alto preço. Mas resistência é luta, Presidente. Sou um homem negro, e como tantos homens negros, poderia estar no teu lugar. Condenado sem provas, sem direito a ampla defesa, sem direito a nada. Pra nós, isso é rotina. Pra nós, a morte é rotina. Se estivesse no teu lugar, Presidente Lula, gostaria de receber esse abraço de mãe, de tia. Esse abraço negro, caloroso, carinhoso, guerreiro.
Nesse abraço, Presidente, vai toda a força de nossa ancestralidade. Vai a herança de Zumbi e Dandara, de Pai Pérsio de Xangô e Mãe Menininha do Gantois. Vai a bênção de Ogum e de Oxóssi, de Oxum e Iemanjá. Que todos os Orixás emanem Axé neste abraço que é meu e delas. Foram elas que me ensinaram que resignação também é luta e por isso sobrevivi. Hoje sou bacharel, mestre e doutor, Senhor Presidente, mas muitos gostariam que eu ainda fosse apenas o filho da empregada.
Numa estrutura que segue reproduzindo a lógica da casa grande e da senzala, um negro não pode almejar projeção nem sucesso. Um nordestino não pode ousar ser um estadista. Uma mulher não pode exercer o poder. Foi bom ter esperança, Senhor Presidente, foi bom sonhar. A História há de resgatar tua dignidade e tua honra. Confio, ainda, que, pela vontade soberana do povo, a justiça será feita.
Receba este abraço, meu querido Presidente Lula, de tantos e tantas como eu, de minha mãe e minhas tias, de homens e mulheres negras que reconhecem a grandeza do teu gesto abnegado pelo bem do povo brasileiro. Tua prisão política, Presidente, é um grito que ressoa pelo mundo; não será à toa, não será em vão.
Rodney William Eugênio
AUTOR
PAI RODNEY DE OXÓSSI
QUEM É
Antropólogo e Babalorixá. Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP.

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